É possível visitar um campo de Refugiados na Palestina?

Como é estar em um campo de refugiados na Palestina?  Como funcionam os acampamentos? Qualquer um consegue visitar? É um tipo de turismo responsável?

 Você já imaginou nascer em um lugar e nunca poder sair do perímetro da sua própria cidade? Lidar com checagem de documentos todos os dias para ir ao trabalho com oficiais que nem falam o mesmo idioma que você?  A ausência do direito de mobilidade se tornou parte da vida neste campo de refugiados na Palestina, mas a situação se replica em mais áreas da Cisjordânia e Faixa de Gaza. 

A terceira geração está crescendo nas mesmas condições de seus avós que perderam terrenos nas últimas negociações do território, nesta região tão importante do Oriente Médio, forçando aproximadamente 1.5 Milhões de Palestinos a viver com sua cidadania em cheque. 

Belém tem um dos mais antigos Campos de Refugiados na Palestina. Veja como foi minha experiência de ver de perto e visitar sozinha esta complexa situação.

5 Fev 19- 9 min

Nos arredores de Jerusalém, há cidades pequenas, mas com significância histórica e religiosas imensuráveis. Jerusalém oriental, Belém, Jericó e Hebron são apenas alguns desses nomes e engana-se quem presume que recursos e territórios são as únicas reivindicações por ali.

O histórico da região não é sutil e nem sereno, mas sim imensamente complexo. Este notoriamente sagrado pedaço no mapa representa enorme interesse particular, ainda que comum entre cada uma das partes envolvidas.  Mais importante do que isso tudo, escancara consequências que rasgam a rotina de quem vive por ali.

Refugiados?

Em determinação internacional no ano de 1948, o espaço agora designado ao Estado de Israel, transformou como consequência o status civil de 711mil palestinos de nacionais para refugiados, forçando-os a a se deslocarem de suas terras originárias para se concentrarem em um dos dois perímetros denominados como a atual Palestina no mapa, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza.

Palestina Mapa

Em laranja as áreas hoje delimitadas como territórios palestinos, cercados pelo Estado militarizado de Israel. Na margem esquerda, a Faixa de Gaza. À direita, a Cisjordânia. As duas regiões não tem contato físico, portanto são politicamente autônomas uma da outra.

Localizada na Cisjordânia, a cidade de Belém- berço de Jesus Cristo segundo a bíblia, compõe parte da fragmentada Palestina atual, e abriga cidadãos, fiéis (em sua maioria católica), refugiados e em menor número, turistas.

O campo de refugiados na Palestina

Cerca de 3,5km do centro de Belém, fica Dheisheh, área neutra delimitada por organizações- braço das Nações Unidas, ou seja: um acampamento de refugiados. Este campo é em sua maior parte composto por famílias que habitavam cidades agora entregues á Israel. Ah, lembrete, caso a atenção tenha voado na leitura: a situação em 2019 completou 71 anos.

Em outras palavras: desde sua formação, Dheisheh já viu a construção de uma vida do zero de seus moradores iniciais, os viu morrer, criou seus filhos, que por sua vez já estão adultos e educando a terceira geração que ali habita. A situação de refúgio passou a ser um status quo, não uma condição temporária.

Por este motivo, neste caso, talvez precisemos desconstruir a imagem que inicialmente vem em mente quando pensamos “campo de refugiados na Palestina”. A percepção atual estilo “Médico sem fronteiras” de barracões estendidos no chão rachado expostos ao sol esperando carros-pipa servirem famílias com risco de subnutrição existe! E são gravíssimas consequências humanitárias na atualidade de conflitos armados civis ou internacionais.

Acontece que Dheisheh deixou de ter este aspecto há muito tempo. No lugar de barracões, foram construídos prédios. Água encanada e eletricidade foram implementadas pela mão de obra local, a baixa oferta de empregos foi sendo substituída pela comercialização independente de alimentos, produtos de higiene ou serviços dentro do próprio grupo, e de maneira simples, foi se construindo uma comunidade praticamente auto-sustentável de consumo.

Shetrips Palestina

Vista do quinto andar, janela do meu quarto com vista para todo o campo de Dheisheh.

Durante o tempo que estive lá, às vezes poderia me esquecer das circunstâncias de tão perpétua que é a situação. Em outros momentos, percebia episódios como: 

  • As ruas no acampamento não tem nome nem número. A melhor forma de se deslocar lá é com algum local, coordenadas geográficas ou muita paciência para se perder.
  • Toque de recolher e revistas de casa compulsórias vindas do soldados de Israel são comuns formas de iniciar ou terminar o dia de qualquer morador em Dishesh. Na minha segunda manhã lá às 5 da manhã, um vizinho do nosso prédio foi levado preso. Nosso palpite é que por recentes militâncias no facebook, o morador chamou atenção da polícia que o prendeu já na manhã seguinte sem mais explicações.
  • Energia e água estão sujeitas a racionamento ou corte devido à informalidade de distribuição.
  • Ainda que autônomos na administração pública, a região não está imune à discordâncias internas. Existem eleições controversas, impostos, corrupção, greves, etc.
Shetrips Palestina

Esbarrei uma vez ou outra em algum posto de saúde ou escritórios oficiais, esses mantidos por organizações internacionais, e com a solícita bandeirinha da ONU sinalizando que aquele espaço é dedicado ao atendimento das necessidades da comunidade de refúgio. Foram esses os únicos espaços para voluntariado que encontrei em Dheisheh.

Shetrips Palestina

Com nome auto-explicativo a Agência das Nações Unidas de Assistência a esse campo de Refugiados na Palestina é um exemplo de auxílio humanitário proveniente das Nações Unidas. Neste posto, o foco é a redução de doenças não-transmissíveis.

Os moradores

Experimente entrar nas margens de Dheisheh e perguntar por Ibrahem ou Aya F. As chances que alguém o conheça são altas. Isso por que o casal é precursor- em identificar potencial na hospitalidade Palestina. Há pouco mais de um ano, eles e seus 3 filhos abriram seu apartamento para hospedar turistas pelo Airbnb. Eles também fazem um tour guiado para quem tiver interesse em conhecer da perspectiva local como é a vivência por ali.

Segundo a família F. , receber viajantes é a chance que eles tem de ter algum contato com o mundo. Antes de achar esta frase fofa ou clichê, eu ressalvo alguns detalhes importantes sobre limitações que essas pessoas lidam diariamente em decorrência de seu status.  Coloquei as frases todas em segunda pessoa:

 

  • Se você nasceu na atual Palestina, não poderá sair das áreas laranjadas em momento algum a menos que tenha a autorização. Ela funciona como se fosse um visto que é previamente concedido pelo exército de Israel enquanto você tenha algum motivo comprovado para “entrar” lá.
  • Um exemplo: se você trabalha em Jerusalém Oriental (área designada Palestina, mas administrada por Israel) poderá permanecer durante 9 horas no território durante os dias de semana, sem exceções.
  • um segundo exemplo: enquanto estava lá, um dos filhos de Ibrahem, assistindo Dora Aventureira na televisão o pediu para levar ao zoológico. A pergunta pegou o pai despreparado. O parque mais próximo fica em Jerusalém, e a criança de 6 anos não poderia entrar lá.

Não é fácil conseguir um passaporte, e os palestinos estão vetados a utilizar qualquer um dos aeroportos em Israel pelo fato de sua nacionalidade não ser reconhecida. A forma para saírem então, é pela Jordânia aos que estão na Cisjordânia. A situação em Gaza é muito mais restrita, ninguém pode sair de lá, nem por Israel, nem pela fronteira ao sul com o Egito. Por isso  a região de Gaza é conhecida por ser  praticamente uma prisão a céu aberto.

Por este motivo, a família anfitriã em Belém faz questão de apresentar sem cerimônia como é sua vida para nós viajantes: cozinham a comida local para seus hóspedes e filhos, os levam para a escola, e mantém suas rotinas. O casal também fica animado em poder criar seus 3 filhos com imersão quase que diária no inglês e até outros idiomas.

Shetrips Palestina

No dia em que cheguei, comemoramos o aniversário de Aya com outros membros da sua família. Me aproximei dela quando ela me ensinou a fazer uma make de olho de gatinho. Mais tarde, Aya me convidou para tomar um chá na vendinha de comida que ficava do outro lado da rua. Lembro que na época ela estava fazendo auto escola pois queria mais independência futuramente.

Como cheguei neste campo de refugiados na Palestina

Em Outubro de 2018, parti de Jerusalém no ônibus 231 que vai até Belém. A viagem é de mais ou menos 25 minutos e tem a tarifa municipal de aproximadamente 4 reais.

Apenas na minha volta para Jerusalém o ônibus parou no checkpoint (uma espécie de fronteira). Todos os 25 palestinos tiveram de sair e apresentar autorização aos soldados. Eles inspecionaram todas as malas no bagageiro para depois liberar um por um a voltar para o ônibus. Eu como estrangeira, não precisei descer do ônibus e nem fazer muito mais do que mostrar de longe meu passaporte. Senti zero hostilidade no tratamento comigo, mas um nó na garganta excruciante de ver que a maioria esmagadora tem de passar diariamente por revistas em longas filas, entrevistas muitas vezes sem poder se comunicar devido à barreira dos idiomas.

Em compensação, na ida, se não soubesse que estaria passando por uma zona militar, não perceberia nenhuma formalidade no trajeto, pelo menos até a parte final da viagem. Isso porque quando nos aproximamos de Belém, avistamos de longe o muro de proporções descomunais que acompanha as várias ondulações da estrada até chegar em Belém.

O clima de repente fica pesado. Essa foi de longe a parte mais desagradável de toda minha viagem. Nesse trajeto quieto não vi ninguém, não ouvi nada, mas senti MUITO.

Melhor saber antes de ir

Belém é segura! Fui sozinha, caminhei bastante pela noite na cidade e no campo de refugiados e não estive em perigo em momento algum. Não tive grandes problemas para me comunicar e não gastei mais do que 20 reais por dia estando lá (incluindo souvenirs), tem taxis que funcionam como carona conjunta com valor fixo de 3 reais convertendo livremente.

É uma cidade pequena e tem alguns pontos turísticos como o letreiro de Belém, o Centro cultural palestino, e os grafites simbólicos naquele muro imenso- no final do post coloquei mais fotos da cidade. Mas o forte mesmo da cidade são as atividade para os cristãos, que podem conhecer a Basílica da Natividade, local de nascimento de Jesus, e várias outras igrejas importantes na história bíblica.

Os palestinos estão cheios de hospitalidade para oferecer, chá para brindar às visitas, sorrisos para entregar e histórias para compartilhar.

Preciso deixar claro que este tipo de experiência não deve ser confundido com turismo de exploração de impasses humanitários, muito menos a exposição livre da vulnerabilidade de quem vive ali. Se teu propósito é estética, selfie, criancinhas refugiadas ou se você não leva a sério o que está em jogo, sugiro que repense as motivações antes de visitar um campo de refugiados na Palestina.

Shetrips Palestina

A família F. ficará muito feliz em saber que há mais viajantes dispostos a compartilhar suas histórias e abrir sua casa para mais um entusiasta. Compartilho o anúncio do quarto no Airbnb que eu aluguei para ter essa experiência.

Um teaser: na Palestina tem um doce muitíssimo parecido com o nosso beijinho. Aí está sua chance de provar.

 

Shetrips video palestina
Shetrips Palestina

Se este artigo levantou mais perguntas do que trouxe respostas sobre a questão do campo de refugiados na Palestina, esse vídeo me ajudou muito a me situar inicialmente.

Extra: no limite de Belém, o icônico muro. Repare o tamanho das pessoas em comparação com a altura do paredão, atrás delas, ainda um degrau acima da altura da cintura deles.

Shetrips Palestina Muro

Existem lojas de tinta spray em frente ao muro para você fazer seu próprio grafite em nome da sua militância. Lamentavelmente ele é tão extenso que faz caber a expressão de todo mundo. Alguns artistas mais simbólicos como Banksy já deixaram sua marca por ali também.

O cidadão na foto abaixo é dono de uma loja de souvenir ali na frente e jura que é o artista de uma das frases mais fotografadas do monumento do murro. Na minha desconfiança de turista solo ele até conseguiu mostrar uma notícia no seu celular com sua foto ao lado do muro, mas meu árabe estava meio enferrujado naquela semana e eu não soube fazer o devido cara-crachá para confirmar. De qualquer forma, fica aí para coleção fotográfica o possível grafiteiro da frase “MAKE HUMMUS NOT WALLS”.

Shetrips Palestina Muro

Special Shukran to Aya, Ibrahem, Aws, Ayham, Alma, Afaf, Dima, Abdullah for the great reception. I hope my words in this article will bring us closer and hope to see you again.

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